O pressentimento de um final

Bom, primeiro queria contar como esse livro veio parar nas minhas mãos. Por acaso, estava andando na rua e vi uma caixa de papelão cheia de livros (quem mora na Alemanha sabe que isso é muito comum aqui; a pessoa faz a limpa e coloca tudo o que sobrou numa caixa de papelão na frente de casa para quem quiser, levar. Já achei coisas bem legais, inclusive um dos meus casacos preferidos, mas o que atrai minha atenção são os livros). Eis que esse era o único interessante, pois já tinha ouvido falar do autor, ganhador de vários prêmios. Peguei o presente e coloquei na minha pilha. Isso já faz um tempo. Pois essa semana resolvi abri-lo.

Gente, esse autor não é famoso à toa; “The sense of an ending” (difícil de traduzir a palavra “sense”, que tanto pode ser sentido como sensação, pressentimento, ou mesmo senso. Pelo contexto da história, achei que pressentimento encaixava melhor, mas a tradutora escolheu sentido na versão oficial da obra em português) é uma obra de arte.

Julian Barnes, o autor, me lembrou muito Sally Rooney, pela facilidade de traduzir sentimentos complexos e ambíguos.

A história é contada por Tony Webster e começa quando ele era adolescente e estudava num colégio só para rapazes muito prestigiado em Londres, em meados dos anos 1960. Ele e seus dois amigos inseparáveis trocavam dúvidas e curiosidades normais da idade, quando um aluno novo entrou no grupo: Adrian. 

Quieto, mas inteligentíssimo e de personalidade fascinante, não parecia  e nem se comportava como um adolescente comum. Ele desafiava professores e parecia saber mais que todo mundo. A mãe dele havia saído de casa e o deixado com o pai, o que tornava a história dele completamente diferente e inusitada, pois, na época, era quase impensável esse tipo de situação.

E ficaram ainda mais chocados com a “maturidade” quando Adrian conseguiu fazer uma análise racional e ponderada sobre o suicídio de outro colega de turma, que tinha engravidado uma moça na flor de seus 16 anos e não deu conta. Todos tinham praticamente a mesma idade e, do grupo deles, nenhum ainda tinha namorado. A surpresa com o evento misturava-se à curiosidade sobre o colega (como ele conseguiu uma namorada e ainda por cima relacionar-se com ela a ponto de engravidá-la?).

Os rapazes foram vivendo a vida, cada um foi para uma universidade diferente, mas ainda se encontrando nos finais de semana. Até que Tony começa a namorar Verônica, uma moça cheia de mistérios e atitudes que ele não conseguia decifrar ou compreender.

Verônica convida Tony para passar um final de semana na casa dos pais em uma cidade próxima; tudo muito tenso e estranho, como é de se esperar. Na manhã seguinte à chegada, Verônica deixa-o sozinho para passear com o pai e o irmão, e a mãe alerta-o sobre o poder de manipulação da filha, enquanto tomam café a sós.

A vida continua (Tony parece um britânico desses bem típicos, previsível, cortês e monótono). Verônica e ele acabam terminando o relacionamento depois de muitas atribulações e mal entendidos.

Pois para a surpresa de Tony, ele recebe uma carta de Adrian, pouco tempo depois, solicitando polidamente uma “autorização” para namorar Verônica. Aqui Tony pensa em como responder a esse “pedido”, rumina sobre a redação curta em um cartão postal, mas sem conclusões.

Passa-se pouco tempo e outra surpresa chega: Adrian dá fim à própria vida. Adrian, aquele moço genial, brilhante, querido por todos, desistiu de continuar no mundo. E termina a primeira parte do livro. 

O que eu esperava da segunda parte? Sei lá, a mesma história contada por Adrian, Verônica, ou até algum dos amigos.

Mas não, é Tony, 40 anos depois: casado e divorciado, com uma filha adulta e uma vidinha que é a cara dele. Chatinha, previsível, porém, confortável.

Mas agora é que a história realmente começa: ele recebe a carta de uma advogada dizendo que a mãe de Verônica faleceu recentemente e deixou uma quantia em dinheiro para ele (não desprezível, mas nenhuma fortuna — algo suficiente para passar um final de semana num bom hotel) e mais: o diário de Adrian.

Epa! O que a mãe de Verônica estava fazendo com o diário do moço? E por que a quantia em dinheiro? E por que ele, a quem só viu uma vez na vida? Aí ele se dá conta de que perdeu completamente o contato com Verônica e com os amigos. Não faz a menor ideia do que aconteceu nas últimas décadas. Casaram-se? Tiveram filhos? Foram felizes? 

Bom, aí é que começa a parte mais interessante da história, onde, preciso dizer, nem tudo se esclarece, mas muita coisa começa a fazer sentido, mesmo que de um modo muito sutil.

Ele se encontra várias vezes com a ex-mulher para pedir conselhos, consegue reencontrar Verônica, depois de muita insistência (sim, ele sabe ser chato e tem toda a paciência necessária para conseguir o que quer sem perder a classe). A questão é que o tal diário agora está com ela e a moça insiste em não devolvê-lo.

Mas ela mostra uma carta que ele mesmo escreveu em resposta àquela enviada por Adrian quando eles começaram a namorar (ué, mas ele não tinha mandado um cartão postal?).

Enfim, muitos desdobramentos escritos com muita elegância e sensibilidade. Não tem muita aventura, mas tem muita consistência e sentimento.

Realmente gostei. E, como eu já disse, tem versão em português (é só clicar aqui para garantir o seu exemplar). Então não tem desculpa…

A menina com todos os dons

Descobri o quarto sebo em Berlim especializado em livros em inglês; para estreá-lo, levei “The Girls with all the Gifts” (tradução livre: “A menina com todos os dons”), de M. R. Carey.

Não vou enganar ninguém; comprei porque gostei do nome, da capa e confesso que fui influenciada pelas frases elogiosas impressas em todos os lugares. 

Aí comecei a ler e me dei conta; não acredito! Caí numa história de zumbis, que detesto! Porém, uma história tão boa e bem escrita que não consegui largar até a página 460, quando acaba.

Continue reading “A menina com todos os dons”

Indistraível

Achei esse livro por acaso num sebo aqui em Berlim especializado em livros em inglês. Mas se soubesse que ele existia, já tinha comprado faz tempo. Já tinha amado o best seller do mesmo autor, chamado “Hooked”, que é praticamente um manual sobre como criar produtos digitais viciantes (leia aqui a resenha).

Mas Indistractable (tradução livre: Indistraível), de Nir Eyal, é ainda melhor e mais indispensável. Resultado de um trabalho de cinco anos de pesquisa, ele nos ensina sobre uma coisa importantíssima nos tempos atuais: como a gente pode evitar se distrair das coisas que realmente importam.

Continue reading “Indistraível”

O veneno do Caracol

Não me lembro mais onde vi (em alguma rede social), uma pessoa recomendando muito “O veneno do Caracol”, de Renata Marinho. A autora, inclusive, ganhou um concurso literário com essa obra. Então lá fui eu pedir para a Valéria Jansen, do Clube do Livro de Münster, trazer um exemplar para mim.

O livro é realmente bem escrito e a trama, bem construída. 

Continue reading “O veneno do Caracol”

Arruinado pelo design

Esse livro me foi recomendado em tantos lugares diferentes que não podia deixá-lo de fora. Então chegou a vez de “Ruined by Design: how designers destroyed the world, and what we can do to fix it” (tradução livre: “Arruinado pelo design: como os designers destruíram o mundo, e o que podemos fazer para consertar isso“, de Mike Monteiro.

A capa já é dramática: uma bomba atômica explodindo sob um filtro vermelho e, na frente, uma chamada para que os trabalhadores da Amazon se reúnam em um sindicato para lutar por condições de trabalho decentes. Mais panfletário, impossível. Mais necessário, impossível também.

Continue reading “Arruinado pelo design”

Lembranças

O livro “Lembranças”, de Munir Charruf, veio parar nas minhas mãos porque vi uma resenha no Instagram, de um moço que eu sigo. Ele parecia empolgadíssimo e acabei sendo contagiada. Assim, encomendei meu volume para a Valéria do Clube do Livro de Münster, que traz a papelada para cá (eu só consigo ler em papel, desculpaí…).

Olha, o que posso dizer? Que o livro está longe de ser ruim, mas também não corresponde tanto assim aos comentários do rapaz (as percepções são diferentes, então isso é bem normal).

O autor pegou elementos de Admirável Mundo Novo (a droga Soma), The Handmaid’s Tale (mulheres sendo usadas como reprodutoras contra a sua vontade), 1984 (o Grande Irmão monitorando tudo pelas telas), e Fahrenheit 451 (a ausência de livros e a vida vivida em telas), Matrix (as pílulas azul e vermelha)  e mais algum agora que não estou me lembrando onde as pessoas não têm memória por mais de 24 horas, e fez essa distopia mix — melhores momentos…rs

Vamos ver então como ficou a história.

Continue reading “Lembranças”

O mapa da cultura

Esse livro é um clássico e é sucesso desde que foi lançado, há 10 anos. Estava esperando a vez dele na minha pilha e eis que chegou a hora do “The culture map: decoding how people think, lead and get things done across cultures” (tradução livre: “O mapa da cultura: como as pessoas pensam, lideram e fazem coisas em diferentes culturas“), de Erin Meyer.

O livro merece realmente toda a fama que tem porque, além de bem escrito, é muito útil, principalmente para pessoas que trabalham com profissionais de outras nacionalidades ou fazem negócios internacionais.

Erin nasceu e cresceu nos Estados Unidos, mas hoje mora na França, onde é pesquisadora e professora do INSEAD, uma das escolas de negócios mais prestigiadas no mundo. O trabalho dela é preparar executivos internacionais para morar, trabalhar e negociar em outros ambientes culturais.

No início, achei que fosse algo parecido com o excelente “O código cultural”, de Clotaire Rapaille (resenha nesse link), mas a abordagem é totalmente diferente (mas igualmente interessantíssima).

Continue reading “O mapa da cultura”

Oração para desaparecer

Mais uma obra que chega às minhas mãos graças à Valéria Bernardelli Jansen, do Clube do Livro de Münster. Dessa vez é “Oração para desaparecer”, de Socorro Acioli.

Eu tinha gostado muito do seu livro anterior “A cabeça do Santo” (resenha aqui) e, quando soube que a autora tinha lançado mais um romance, pedi para a Valéria.

A Socorro é professora universitária e tem uma cultura sobre os costumes e lendas do Brasil vasta e aprofundada; ela usa esses elementos como ninguém em suas histórias.

Para mim, que não sou religiosa ou mística, “Oração para desaparecer” é uma fábula belíssima — mas tem potencial para que pessoas mais espirituais que eu tenham uma leitura com mais camadas e significados. 

Continue reading “Oração para desaparecer”